Carta de Henri Matisse (1869-1954) à Henry Clifford - Diretor do Museu de Arte da Filadélfia

“Veneza, 14 de Fevereiro de 1948
Caro Mr. Clifford:
Espero que minha exposição seja digna de todo o trabalho que está lhe dando e que me comove profundamente.Tendo em vista, porém, a grande repercussão que pode ter, e vendo quantos preparativos estão sendo feitos para ela, pergunto-me se o seu âmbito não terá uma influência mais ou menos infeliz sobre os jovens pintores. Como interpretarão eles a impressão de aparente facilidade que lhes produzirá uma visão geral rápida, e até mesmo superficial, de minhas pinturas e desenhos? Sempre tentei ocultar os meus próprios esforços e sempre desejei que minhas obras tivessem a leveza e a alegria de uma primavera, que nunca nos permite suspeitar do trabalho que custou. Por isso, receio que os jovens, vendo em minha obra apenas a facilidade e negligência aparentes no desenho, se sirvam disso como desculpa para evitar certos esforços que me parecem necessários. As poucas exposições que tive a oportunidade de ver durante estes últimos anos levam-me a temer que os jovens pintores estejam evitando a lenta e penosa preparação necessária à educação de qualquer pin-tor contemporâneo que declara construir apenas pela cor. Esse trabalho lento e penoso é indispensável. Na verdade, se os jardins não fossem cavados no momento adequado, em breve não serviriam para nada. Não precisamos limpar o terreno para em seguida cultivá-lo a cada estação do ano? Quando o artista não soube preparar o seu período de floração, mediante trabalho que apresenta pouca semelhança com o resultado final, breve é o futuro que tem à sua frente; ou quando um artista que 'ven-ceu', já não sente a necessidade de voltar à terra de tempos em tempos, começa a andar em círculos, repetindo-se, até que sua curiosidade se extingue nessa repetição.O artista precisa possuir a natureza. Deve identificar-se com o seu ritmo, por meio de esforços que o farão adquirir o domínio graças ao qual poderá, mais tarde, expressar-se na sua própria linguagem. O futuro pintor deve sentir o que é útil para o seu desenvolvimento – desenho, ou mesmo escultura – tudo o que o permitirá a ser um com a Natureza, identificar-se com a Natureza, penetrando nas coisas – que é o que chamo Natureza – que estimulam seus sentimentos. Acredito que o estudo por meio do desenho é essen-cial. Se o desenho é do Espírito e a cor dos Sentidos, é preciso desenhar primeiro, para cultivar o espírito e ser capaz de conduzir a cor para caminhos espirituais. É por isso que quero gritar bem alto, quando vejo o trabalho dos jovens para quem a pintura já não é uma aventura e cujo único objetivo é a eminente expo-sição individual que os ponha no caminho da fama. Só depois de anos de preparo deve o artista jovem tocar na cor – isto é, não a cor como descrição, mas como meio de uma expressão íntima. Só então pode ele esperar que todas as imagens, até mesmo todos os símbolos, que usar, sejam o reflexo de seu amor pelas coisas, um reflexo em que ele pode confiar, caso tenha realizado sua educação com pureza e sem mentir para si mesmo. Então ele empregará a cor com discernimento. Irá colocá-la de acordo com um projeto natural, não formulado e totalmente disfarça-do, que nascerá diretamente de seus sentimentos: foi isso que permitiu a Tolouse-Lautrec, no fim de sua vida, exclamar: 'Finalmente, já não sei mais desenhar.'O pintor que está apenas começando acha que pinta com o coração. O artista que completou seu desen-volvimento também acha que pinta com o coração. Só este último está certo, porque seu treinamento e disciplina lhe permitem aceitar impulsos que ele pode, pelo menos em parte, disfarçar.Não tenho a pretensão de ensinar: quero apenas que minha exposição não provoque interpretações falsas naqueles que ainda precisam abrir o seu caminho. Gostaria que as pessoas soubessem que não podem abordar a cor como se estivessem entrando por uma porta de um moinho, que é necessário passar por um rigoroso preparo para ser digno dela. Mas, antes de tudo, é evidente que devemos ter o dom da cor, como o cantor deve ter voz. Sem esse dom, não podemos chegar a lugar nenhum, e nem todos podem dizer como Corregio: 'Anch'io son pittore.' Um colorista faz sentir sua presença até mesmo num simples desenho a carvão.Meu caro Sr. Clifford, chego ao fim de minha carta. Comecei-a para dizer-lhe que compreendo o trabalho que está tendo comigo no momento. E vejo que, obedecendo a uma necessidade íntima, fiz desta carta uma expressão do que sinto sobre o desenho, a cor e a importância da disciplina na educação de um ar-tista. Se acha que todas essas minhas reflexões podem ser úteis a alguém, faça com esta carta o que lhe parecer melhor..."

Henri Matisse

Nenhum comentário:

Postar um comentário